sábado, 24 de outubro de 2009

O Vértice do Triângulo

O Vértice do Triângulo: Relações de Gênero e Sexualidade em Dom Casmurro
Richard Miskolci

O enredo de Dom Casmurro não poderia ser mais simples. O romance parece um retrato de um bacharel aposentado, Bento Santiago, que narra a história de sua vida a partir de seu amor de juventude. Amor que muda os rumos do rapaz prometido ao sacerdócio, o torna um pater familias, mas também o precipita no fracasso. Que fracasso seria esse? Aparentemente, a descoberta de ter sido duplamente traído: por Capitu, sua esposa, com seu melhor amigo, Escobar.
O romance foi lido como uma história de traição por mais de meio século até que a professora norte-americana Helen Caldwell publicou O Otelo Brasileiro de Machado de Assis (1960), livro em que apontou o intuito crítico de Machado com relação ao narrador. Bento Santiago seria um ser corroído pelos ciúmes, que tenta provar para si e para nós, leitores, que foi traído por aqueles em quem mais confiara. A leitura arguta de Caldwell contribuiu pra que fosse possível reler a obra de Machado sob uma nova ótica e finalmente reconhecê-lo como crítico (velado) da elite brasileira de seu tempo. Desde então percebemos que os romances machadianos ainda trazem enigmas a serem desvelados. No caso de Dom Casmurro, permanece o fato de que essa história de amor ou de traição não é a de um casal, mas de um trio. O romance retrata um triângulo amoroso e uma análise que se desviar de qualquer dos possíveis vértices condenar-se-á à parcialidade.
A leitura que segue ambiciona fugir do mero acúmulo de informações adicionais sobre conhecimento já produzido e reler Dom Casmurro sob uma perspectiva sintonizada com a ousadia dos Estudos Culturais acoplada aos avanços teóricos do feminismo e da Teoria Queer.[i] Ao invés de seguir a já tradicional leitura da obra de Machado centrada na análise por relações de classe, meu intuito é mostrar que outras segregações se cruzavam com as econômicas, particularmente a de gênero. Assim, aqui o triângulo não é compreendido como pirâmide social, antes como uma relação amorosa em que a base é a estrutura que mantinha afastado e apartado o vértice: as identidades recusadas e invisibilizadas pela decadente ordem imperial assim como pela burguesa ascendente.
Qual era a base e qual era o vértice inaceitável para a sociedade brasileira em transição da segunda parte do século XIX? No início, o enredo do romance parece ser o de um namoro proibido que termina em um casamento feliz e na formação de uma família nos moldes burgueses. A surpresa que nos reserva o autor é a da quebra da harmonia com a revelação de que o casal era um triângulo e que a harmonia escondia tensões irresolvidas e talvez até mesmo sem solução.
Durante a segunda metade do século XIX, a sociedade brasileira passou por um processo histórico de reestruturação da ordem familiar que pode ser descrito como a substituição da família patriarcal pela burguesa. O aburguesamento tem na família nuclear monogâmica seu alicerce, o que no período republicano em que foi escrito o romance já era evidente. O drama privado e aparentemente intimista do romance revela-se, assim, mais representativo do contexto social brasileiro do fin-de-siècle do que pareceria à primeira vista.[ii]
A história já começa com o pai de Bentinho morto e sua família vivendo no meio urbano e aburguesado do Rio de Janeiro. O rapaz, filho da viúva Dona Glória, é um prometido ao sacerdócio sem vocação para a religião, mas incapaz de reverter a promessa materna por conta própria. Sua libertação do sacerdócio se dará por uma justificativa amorosa (o amor por Capitu) e, sobretudo, pela perspicaz idéia de seu colega de seminário. Escobar, um jovem com talento para os negócios e também sem vocação religiosa, propõe à mãe de Bentinho que patrocine um rapaz pobre que siga a vocação religiosa no lugar de seu filho. O arranjo, revelador da proeminência do poder econômico nas questões religiosas, liberta Bentinho dos votos maternos e o libera para o casamento.
Debruçado sobre o enigma por trás da transformação do supostamente ingênuo Bentinho no amargo Casmurro, Roberto Schwarz afirma que o ponto de mutação se encontra justamente no casamento com Capitu. O ápice do amor do casal termina por se revelar a ascensão de Bentinho à posição de herdeiro, proprietário e, portanto, seu estabelecimento no topo da hierarquia social e econômica.[iii] Ainda que este aspecto seja importante, o episódio que transmuta Bento não é o casamento, antes a morte de seu amigo. O afogamento de Escobar desnorteia o bacharel, o enche de suspeitas sobre Capitu e vira sua vida pelo avesso.[iv]
O pânico com relação à possível traição não se reduz ao ciúme pela esposa, pois não há limite seguro entre desejar o que alguém tem (Capitu) sem desejar esse alguém (Escobar). Aí a chave da paranóia de Bento Santiago que não se dissocia da incerteza sobre a natureza (ou não) homossexual de seus laços com Escobar. Em nossa sociedade, a relação homossocial masculina é aceitável como normal desde que mediada por uma mulher, mas com a morte de Escobar esta mediação passa a assombrar Bento. Por quê? Talvez porque o ciúme não seja dirigido a Capitu por o ter traído, antes porque a traição teria sido com seu amigo secretamente desejado.
Cabe aqui uma reflexão sobre estas relações homossociais masculinas em que as mulheres sempre estão presentes como mediadoras. Estas relações que fundamentam a heterossexualidade baseiam-se em uma parceria masculina no domínio das mulheres. A mulher é, como já observou Claude Lévi-Strauss, um meio para uma relação em que o verdadeiro parceiro é um homem.[v] Mais do que isso, essa relação entre homens mediada por uma mulher dá um tipo particular de poder a eles, pois permite que – conjuntamente e em simetria com a ordem social - subordinem a mulher (e analogamente todas as outras). Desta forma, adquirem masculinidade contra o feminino encarnado e projetado apenas em mulheres, em suma, representado socialmente naquela que media sua relação homossocial.
Utilizo o conceito de desejo homossocial masculino como sendo a “liga” das relações entre homens baseadas na camaradagem.[vi] Uma combinação estruturada entre homofobia e heterossexualidade compulsória marca as relações de gênero e a própria forma que toma a sexualidade na sociedade burguesa. Assim, aproximamo-nos da compreensão da razão pela qual, em fins do século XIX, as relações entre homens sofreram uma grande mudança. As relações homossociais masculinas passaram a ser socialmente mais controladas, de forma a levar a uma diminuição da intimidade entre homens e a uma reestruturação da amizade como periférica à relação com a mulher dentro da família nuclear.[vii] Este novo contexto fez emergir o temor social com relação à proximidade entre homens, até mesmo porque não há estabilidade garantida em uma relação com uma mulher em uma sociedade em que ela é uma moeda de troca entre os homens.
No contexto em que as relações entre homens passam a ser problematizadas socialmente emerge o que podemos denominar como homofobia, ou seja, um complexo mecanismo social de controle das relações entre homens para que elas mantenham sua função de parceria na dominação masculina das mulheres e não caiam no “perigoso” desejo amoroso por um parceiro do mesmo sexo. A homofobia revela-se, assim, um componente essencial na manutenção de toda uma ordem de poder calcada no domínio das mulheres, no casamento e na manutenção da frágil união monogâmica que forma o núcleo da estrutura familiar burguesa.[viii]
A combinação entre homofobia e domínio das mulheres define o que teóricos queer denominam de dispositivo da heterossexualidade compulsória, o que revela tanto o caráter social e histórico da heteronormatividade quanto sua relação necessária com a supostamente “oposta” homossexualidade.
Estudos históricos recentes permitem afirmar que a sociedade brasileira de fins do dezenove é marcada por essa nova ordem estruturante da sexualidade[ix] e vários romances do período permanecem à espera de análises sob esta perspectiva. No caso de Dom Casmurro, isto se torna visível na relação entre Bentinho e Escobar desde a adolescência vivida no seminário até na vida de casados. No ponto de viragem do enredo, Escobar chega a planejar uma viagem conjunta à Europa, o que provoca em Bento pensamentos eróticos sobre uma possível troca de casais. No dia seguinte, chega a notícia inesperada de seu afogamento. O golpe em Bento é avassalador. No velório passa a desconfiar de Capitu, imagina a traição e isto, somado à perda, causa-lhe um pranto descontrolado que o torna incapaz de proferir o discurso no sepultamento do amigo. É neste ponto do romance que emerge a paranóia que transformará Bento no narrador Casmurro.
Bento revela-se incerto sobre a fidelidade da esposa, sobre o que imaginava de Escobar, sobre a paternidade do filho ao qual deu o nome de seu maior amigo. Essas incertezas colocam em xeque sua posição na relação amorosa, na família que construíra e até mesmo na sociedade. Bento torna-se paranóico e, em termos sociológicos, sua paranóia é compreensível não como um mecanismo psíquico diante de sua situação fragilizada. A paranóia do protagonista é a expressão internalizada de forças sociais claramente enunciáveis: as pressões que moldam sua identidade social aceitável, mas que, após a morte do amigo não consegue mais incorporar sem conflitos. A paranóia torna Bento um veículo de expressão das violências que marcam as assimetrias de classe e gênero de sua época, as quais se voltam contra Capitu, mas também contra si mesmo na forma de homofobia.
Compreendo aqui homofobia como a ferramenta de controle social sobre o espectro das relações homossociais e o foco nela como um meio para explorar a constituição social dos gêneros e da sexualidade em oposição a uma abordagem psicologizante que facilmente recai na retórica de uma orientação sexual minoritária. A proposta deste artigo é apresentar uma sociologia dos mecanismos de proibição e controle que constituíram historicamente a heterossexualidade em uma relação oposicional e necessária em relação à homossexualidade. Vale recordar que o enredo de Dom Casmurro se passa no período de invenção desses termos e da patologização e criminalização da homossexualidade.[x]
Na época em que foi escrito o romance (1896-1899), a conservação e reprodução das identidades de gênero tinham se tornado centrais para a nova ordem republicana centrada na família burguesa. Bento torna-se Casmurro ao reiterar as opressões de classe e gênero que estruturavam a ordem social de seu tempo. Neste sentido, sua paranóia une a desconfiança da traição da mulher com o temor da natureza do desejo pelo amigo. Capitu passa a ser vista como a arrivista traidora que lhe tomou até mesmo a virilidade por causa da dúvida sobre a paternidade de Ezequiel. Ela encarna seu fracasso e ameaça seu poder. Escobar torna-se o espectro que coloca em xeque sua masculinidade nas feições do próprio filho e, diante deste fantasma, Bento chega a cogitar o suicídio por envenenamento. Na época, esta modalidade de atentado contra a própria vida era mais associada às mulheres enquanto os homens preferiam se enforcar ou atirar em si mesmos. Assim, o maior ato de desespero do protagonista - não levado a cabo - demonstra como a paranóia o feminizava.
Em termos de relações de poder indissociáveis das de gênero, a vida de Bento foi marcada pela experiência de ser um filho de viúva, ou seja, controlado por uma mulher que até mesmo o prometera à vida religiosa. O futuro eclesiástico era como uma castração e foram duas figuras masculinas que o ajudaram a se libertar dela: o agregado José Dias e, sobretudo, Escobar. Dias auxiliou ao tornar visível e aceitável seu amor pela vizinha Capitu, o que inviabilizaria sua vocação enquanto Escobar teve a idéia que pôs fim ao dilema de sua mãe: substituir Bentinho por um rapaz pobre que seguiria a vida religiosa em seu lugar. Mais adiante, a possível traição de Capitu tira-lhe o poder patriarcal e coloca em dúvida sua paternidade. Desta forma, em sua vida, apenas homens legitimaram Bento enquanto as mulheres ameaçaram seu poder (masculino).
A paranóia de Casmurro, incerto sobre seu poder e sobre sua masculinidade, é o fio condutor da narrativa em que Capitu concentra as atenções por ser, aparentemente, o meio que permitiu superar seu futuro eclesiástico para a ascensão como marido, herdeiro, proprietário e pai, mas por fim tomou-lhe a confiança. No entanto, Capitu é apenas um dos vértices do triângulo amoroso em que Escobar desempenha um papel não menos importante. Afinal, é ele que torna possível a liberação de Bentinho para uma vida agnóstica e é sua morte que precipita o amigo na desconfiança da esposa cujos olhos de ressaca se confundem com o mar bravio no qual perdeu a vida. Sem Escobar, Bento não pode mais prosseguir confiante em seu papel de marido e pai de família.
Machado de Assis apresenta cuidadosamente a importância do elo entre Bentinho e Escobar. Ainda que seja arriscado inferir desejos claramente homoeróticos não é exagero convidar a refletir sobre como tal relação se dava na tênue linha do espectro homossocial em que a relação entre homens é a forma privilegiada de socialização masculina e partilha do poder sobre as mulheres.
As formas da sexualidade e o que conta como sexual em uma sociedade em que o acesso ao poder difere segundo o gênero gera diferenças importantes na estrutura e na constituição da sexualidade. Se levarmos às últimas conseqüências a triangulação amorosa de Dom Casmurro, encontraremos não apenas a centralidade da relação Bento-Escobar, mas, sobretudo, o fato de que o vértice do triângulo, o ponto mais distante da base também é o mais revelador. Assim, é ele que nos (a)ponta para o/a Outro/a não apenas na relação amorosa, mas também nas relações de poder expressas aí onde menos aparecem. Capitu ou Bento, mais do que as personagens, encarnam o simulacro do Outro que se criava na nova ordem social que emergia com o fim do Império.
O triângulo amoroso revela dois vértices em relação a Casmurro. Bento envelhecido e desconfiado torna-se a encarnação da ordem social em que as relações de poder, portanto entre as classes e os gêneros, é defendida como em um tribunal. Os vértices são Capitu, suspeita de traição e arrivismo, e Bento jovem, o que se deixa levar em uma relação (eroticamente) ambígua com o amigo Escobar.
Assim, o triângulo amoroso encontra um de seus vértices em Capitu, mas também em um outro, o próprio Bento antes da “descoberta” da traição. Afinal, o Outro da sociedade brasileira de fins do dezenove não é encarnado em apenas uma identidade social, antes pode ser conhecido como um mosaico dos temores hegemônicos, a criação fantasmagórica de um homem paranóico, Casmurro, um homem perseguido pelas fraturas em sua própria identidade: o amor pela esposa perigosamente portadora de idéias próprias e, sobretudo, a relação com o amigo que lhe dava poder e confiança, mas que arrancada pela morte, ameaça seu poder de uma forma mais difícil de explicar.
Dentro destas novas premissas, o que há de realmente novo e problemático na ordem burguesa emergente no Brasil de fins do dezenove é a problematização das relações entre homens e, ao contrário do que parece à primeira vista, a base do triângulo amoroso repousa na relação Bento-Escobar. Este último, seu comborço, é o espectro que revela uma faceta de Bento na juventude que o maduro Casmurro não consegue compreender nem aceitar.


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