quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Capitu: o monstro silenciado

Linda Catarina Gualda (UNESP)
“Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabeça”. (Assis, 1997: 183)
A narrativa de Machado de Assis joga com os valores culturais e sociais vigentes no período imperial, isto é, a condição feminina apresentada é clara: está presa ao estabelecido, conserva o padrão; mas no discurso reservado, no fluxo do pensamento, as personagens refutam, questionam os papéis que lhe são impostos na sociedade brasileira. Capitu é um exemplo de mulher que transcende a definição de esposa, mãe e mesmo o estereótipo de mulher. Ela busca uma maneira de transpor o estabelecido; luta por emancipar-se, pois está cansada das exigências sociais e familiares que lhes são destinadas; quer experimentar algo que saia de si própria. De fato, a heroína pode ser um exemplo da humanidade aterrorizadora, porque permanece icognissível ao ser apresentada através da visão doentia e perturbada de Bento Santiago. Este, como vítima de sua própria retórica está no plano da imaginação e pode ser visto como um perdedor.
Ao contrário de Luísa, Capitu representa a mulher emancipada, a que se coloca tanto no plano espiritual, quanto no sexual e se mantém ativa, nunca passiva. Seu traço mais pertinente é uma independência quase intrínseca à sua natureza. Há uma leveza, uma espontaneidade em sue espírito que a coloca acima dos papéis que lhe eram reservados na cultura e na sociedade a que pertencia. Roberto Schwarz (1977: 24-5) observa que Capitu consegue satisfazer todos os quesitos da individualização, pois é forte o suficiente para não se degradar diante da vontade superior. O encanto da personagem, segundo o crítico, se deve à naturalidade com que se desloca no meio em que vive e superou. A personagem é um tipo de extraordinária vitalidade “soma e fusão de múltiplas personalidades, espécie de supermulher” (Pereira, 1959: 24).
Podemos perceber que a construção da figura de Capitu é intencional como montagem de uma armadilha narrativa. Certas características sugeridas na primeira parte do romance têm o papel de apoiar a traição que o narrador da segunda parte nos empurra. Ao longo desse percurso, o objetivo de Bentinho parece ser o de caracterizá-la como uma jovem voluntariosa, ativa, racional, calculista, capaz de lidar facilmente com situações embaraçosas e que está disposta a tudo para atingir suas metas. O que se pode dizer é que o narrador montou sua narrativa de modo a fazer caber na Capitu de Matacavalos a Capitu adúltera da Glória e a faz parecer como um ser reprimido, sem contorno e silenciado.
Capitu pode ser vista como o feminino inquietante (Cf. Passos, 2003 15), o perigo invisível que ronda a casa, que está sempre por perto. Para sustentar a verossimilhança do romance, Machado constrói uma imagem de mulher perigosa e apela para alguns dados de categorias de mulheres que destroem a vida e a reputação de um homem. Nossa heroína conflui para a dissimulação e, por isso, quando é feita a comparação com Desdêmona, não há nenhuma chance de perdoá-la ou de nos apiedarmos dela. A sapiência em lançar, desde o início da trama, características e episódios que a sustentam como ser superior e bem mais dotado de racionalidade do que Bentinho, nos causa a sensação de que qualquer passo de Capitu fora previamente arquitetado. E é esse tipo de caracterização que possibilita a aceitação da teoria de adultério engendrada pelo narrador. De fato, Capitu abre precedentes para que se duvide de suas intenções, mas nem por isso se pode afirmar que estamos lidando com uma personagem calculista e transgressora.
O tema da mulher fatal é tão recorrente na obra que o tempo todo o vemos relacionado com a degradação e, sobretudo com a perda da inocência do narrador. Além disso, várias vezes, durante a narrativa, temos a descrição física de Capitu que sempre aparece como um ser mais capacitado, infinitamente mais maduro e dotado de muito mais atributos e sensualidade do que Bentinho/Casmurro.
O corpo de Capitu está sempre em evidência, propiciando relações e imagens de vários tipos: os olhos, por exemplo, “são claros e grandes” (Assis, 1997: 85) ou então, “são de cigana oblíqua e dissimulada” (Assis, 1997: 85) e os braços são tão deslumbrantes que “merecem um período” (Assis, 1997: 210). Esses traços a faz oscilar entre a mulher fatal e a dona de casa. Como a primeira, encontra na rua o ambiente ideal para se deixar contaminar pela possibilidade de traição: a figura feminina ao se mostrar num espaço público instaura a dúvida, a ambigüidade, pois apresenta a chance de se oferecer, na condição de promessa ou, até mesmo, mercadoria. A partir daí, o mundo exterior penetra no interior e temos a instalação do caos. Já a idéia de mãe e esposa dedicada está marcada pelo dado religioso, pela satisfação em estar casada e pela devoção ao marido e ao filho. É esse misto de mistério e encanto, de anjo e monstro, que a tornará tão enigmática e interessante.
Todavia, não podemos esquecer que estamos lidando com um narrador autoritário e que pertence a uma sociedade patriarcal e sendo assim, vê a mulher como ser subalterno, inferior. Nesse sentido, os olhos de Capitu correspondem em termos de força e intensidade, às palavras do marido. A mulher é silenciada e sua voz transborda através do olhar que trava uma luta intensa com o homem, detentor da palavra, em outras palavras, detentor do poder. O narrador se interpõe a ela com a voz autorizada de alguém culto e capacitado para falar, não tentando salvá-la, ao contrário, condenando-a ainda mais à solidão, ao desprezo. Silenciada, acuada e sem a menor possibilidade de defesa, a mulher deverá ser punida de sua possível transgressão – de preferência com a morte –, a fim de que seja mantida a ordem na sociedade. O envio de Capitu à Suíça e lá sua morte simbolizam a manutenção da ordem rompida e põe um fim ao risco
Não apenas porque rearticula a moral, fazendo com que ao desregramento suceda a ordem anterior, mas também porque ajuda a configurar – juntamente com a doença e a decrepitude, o império do desprazer. Não há lugar, no mundo organizado da produção, para essa figura – inquietantemente perdulária – que, ao mesmo tempo, liberta e aprisiona o homem (Passos, 2003: 58).
De fato, a força de Capitu preenche perfeitamente a fraqueza de Bentinho: ela é completa, enquanto o narrador é todo constituído por partes, uma figura montada pela mãe, pela condição social e por insegurança; é mais parte do ciúme do que da maturidade. A mulher é tão maior que ele que, mesmo depois de morta e “culpada”, ainda preenche seu imaginário. O fato de reunir num livro suas memórias e, principalmente, a lembrança de um tempo em que ela era peça-chave em sua vida só vem a provar o quanto ela sempre foi e ainda é a parte mais forte e importante de sua vida. Apesar de ambos terem mantido uma relação de decadência, para o narrador não há mais superação, não há mais possibilidade de felicidade e o único consolo é a reconstrução da casa de sua infância no afã de trazer os tempos áureos de volta.
De acordo com Eugênio Gomes (1967: 102), Capitu é submetida a um processo de despersonalização que ressalta os atributos de eterno-feminino, já que sua apresentação – implícita – nos é fornecida no correr da ação ou na análise progressiva pelo pseudo-autor, através de associações dinâmicas – flashes retrospectivos e antecipatórios. Esse tipo de caracterização vai de encontro com a realidade oscilante do romance, produto de uma imaginação, não apenas de lembranças.
Vale ressaltar que Capitu é incapaz de agir puramente por interesses próprios, porque qualquer declaração de sentimentos verdadeiros é interpretada como ambição. Na verdade, o fato de não ser levada a sério, no sentido de não ser considerada uma pessoa confiável, constitui o verdadeiro dilema da personagem que, acuada e rejeitada, faz a opção pelo silêncio como escudo. O ato de não falar podem ser traduzido como o resultado de sua situação ambígua e de seu “limitado campo de manobra” (Gledson, 1991: 74).

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