domingo, 25 de outubro de 2009

O CORAÇÃO TEM RAZÕES QUE A RAZÃO DESCONHECE

As personagens e suas características:
 PEDRO: adolescente astuto, intelectual, perspicaz. Nele, a razão predomina sobre a emoção. Possuía fortes “razões” para namorar Vera, uma vez que a emoção, por si só, não levaria a nada,
 JOÃO: jovem alegre, agradável, mas de cabeça vazia; andava sempre junto de Vera, dando a entender possível namoro.
 VERA: uma gatinha de 16 anos, sempre na moda e alegre.
Na hora do recreio, no pátio do colégio. Pedro aproxima-se de João e pergunta:
- Por que você está triste, João? Está doente?
- Não, cara, é que não tenho uma moto. Já pensou quantas garotas eu não conquistaria com uma 250 cilindradas?
- Nenhuma amigo, nenhuma do porte estático de Vera. Se você tivesse uma moto, só conquistaria “patricinhas” ou “peruas”, pois as pessoas atraem pelo que são e não pelo que têm – respondeu Pedro.
- Eu faria qualquer coisa para conseguir uma moto. Qualquer coisa!
Pedro sabia que João e Vera eram muito chegados e, por isso, perguntou:
- João, você namora Vera?
- Acho que ela é legal, mas não sei se isso poderia ser considerado namoro. Por quê?
Passado o mês de férias, julho, ambos retornaram ao colégio e continuaram a conversa:
- Já conseguiu a moto, João?
- Não, Pedro, não tenho dinheiro para compra-la.
- Pois eu tenho uma moto. Meu irmão mudou-se para os EUA e deixou-a pra mim. Como eu não gosto de moto...
- Mas que legal, cara! Quando posso busca-la?
- Hoje mesmo, se quiser. Mas, para ficar com ela, terá que me dar suas coleções de livros e revistas.
- Fechado, cara. Eu não leio mesmo...
- Mas há uma condição: não me impeça de tentar conquistar a Vera.
- Fechadíssimo, irmão!
Pedro, ajudado por João, marca um encontro com Vera na quadra de peteca do colégio. Fica decepcionado com a ignorância de Vera e decide ensinar-lhe lógica.
No encontro seguinte, Vera pergunta para Pedro:
- Sobre o que conversaremos?
- Lógica. Lógica é a ciência do pensamento. Para pensar corretamente, devemos antes considerar alguns erros comuns de raciocínio chamados sofismos ou falácias. Primeiro, vamos examinar o sofisma chamado generalização não-qualificada. Por exemplo: “Leite é bom para saúde. Por isso, todos devem tomar leite”.
- Eu concordo – disse ela, séria – Acho que leite é ótimo para todo mundo.
- Vera, esse argumento é um sofisma. Que ver? Se você tivesse alergia a leite, ele seria um veneno para sua saúde. E são muitas as pessoas que têm alergia a leite. Por isso, o correto seria dizer: “Leite geralmente é bom para saúde”. Entendeu?
- Não. Mas continue falando.
- O próximo sofisma é chamado generalização apressada. Preste atenção: “Você não sabe falar grego, eu não sei falar grego. João não sabe falar grego. Então, devo concluir que ninguém no colégio sabe falar grego”.
- É mesmo? – perguntou Vera, surpresa – Ninguém?
- Esse é outro sofisma. A generalização foi feita de maneira muito apressada. A conclusão se baseou em exemplos insuficientes.
- Ei, você conhece outros sofismas? É mais engraçado do que dançar!
- Bem, então escute o sofisma chamado ignorância de causa: “Alexandre viu um gato preto antes de escorregar. Logo, ele escorregou porque viu um gato preto”.
- Eu conheço um caso assim – disse ela – Bernadete viu um gato preto e logo depois o namorado dela teve um acidente de...
- Mas Vera, esse também é um sofisma. Gatos não dão azar. Alexandre não escorregou simplesmente porque viu um gato preto. Se você culpar o gato, será acusada de ignorância de causa.
- Nunca mais farei isto, prometo. Você ficou zangado?
- Não, não fiquei.
- Então fale mais sobre os sofismas.
- Certo. Vamos tentar as premissas contraditórias.
- Sim, vamos.
- “Se Deus é capaz de fazer qualquer coisa, pode criar uma pedra tão pesada que Ele próprio não consiga carregar?”
- Claro! – ela respondeu prontamente.
- Mas, se Ele pode fazer qualquer coisa, também pode levantar a pedra...
- É mesmo! Bem, então acho que Ele não pode fazer a pedra.
- Mas Ele pode fazer tudo!
- Ela balançou a cabeça:
- Eu estou toda confusa!
- Claro que está. Sabe, quando uma das premissas de um argumento contradiz a outra, não pode haver argumento.
Pedro consultou o relógio e disse que era melhor para por ali. Recomeçariam no dia seguinte.
- Hoje nosso primeiro sofisma é chamado de por misericórdia. Ouça: “Um homem se candidatou a um emprego. Quando o patrão perguntou sobre as suas qualificações, ele respondeu que tinha filhos, que a mulher era aleijada, as crianças não tinham o que comer, nenhuma roupa para vestir, nenhuma cama, nenhum cobertor e o inverno estava chegando”.
- Uma lágrima rolou pelo rosto de Vera.
- Oh, isso é horrível!
- Sim, é horrível – concordou Pedro – mas não é argumento. O homem apelou para a misericórdia e a piedade do patrão. Usou o sofisma por misericórdia. Entendeu?
- Você tem um lenço? Choramingou ela.
- Agora vamos discutir falsa analogia. Por exemplo: “Deveria ser permitido aos estudantes consultar livros durante as provas. Afinal de contas, cirurgiões têm raio X para guia-los durante as operações; engenheiros usam plantas quando vão construir prédios.”
- Puxa, essa é a idéia mais genial que ouvi nos últimos anos!
- Vera, o argumento está errado. Médicos e engenheiros não estão fazendo provas para saber quanto aprenderam, mas os estudantes estão. As situações são completamente diferentes, e por isso o argumento não tem valor.
- Eu ainda acho que é uma boa idéia.
- Quer conhecer um sofisma hipótese contrária ao fato?
- Isso soa delicioso!
- Escute: “Se madame Curie não tivesse deixado uma chapa fotográfica numa gaveta com um pedaço de uramita, o mundo hoje não conheceria nada sobre o rádio.”
- Claro! Você viu o que a televisão disse sobre isso? Foi incrível!
Pedro, já sem esperança de Vera pudesse pensar logicamente, resolveu dar-lhe a última chance:
- O próximo sofisma chama-se envenenando o poço – disse, com ar de frustrado.
- Que engraçadinho!
- “Dois homens estão prestes a iniciar um debate. O primeiro levanta-se e diz: «meu adversário é um grande mentiroso. Não se pode acreditar no que ele diz»...” agora pense, pelo amor de Deus. Pense firmemente. O que está errado?
- Não é justo. Quem vai acreditar no segundo homem se o primeiro o chama de mentiroso antes mesmo que ele comece a falar?
- Certo – gritou Pedro,vibrando de alegria. – 100% certo! Não é justo. O primeiro homem “envenenou o poço” antes que alguém pudesse beber a água! Vera, estou orgulhoso de você!
- Oh, obrigada!
- Agora, vejamos o petição de princípio. Por exemplo: “Cigarro prejudica a saúde porque faz mal ao organismo”.
- É claro que a afirmativa é infantil. É como se dissesse: “prejudica porque prejudica”. Não explica nada.
- Vera, você é um gênio. Esse sofisma toma como verdade demonstrada justamente aquilo que está em discussão. Veja, minha querida, as coisas não são tão difíceis. Tudo o que deve fazer é se concentrar, pensar, examinar, avaliar. Bem vamos rever tudo o que aprendemos.
- Está bem.
Cinco dias depois, Vera sabia tudo sobre lógica. Pedro estava orgulhoso, pois ele, e só ele, ensinara-a a pensar corretamente. Agora sim, ela era digna de seu amor.
Assim, ele decidiu revelar seus sentimentos.
- Vera, hoje não vamos mais conversar sobre sofismas.
- Oh, que pena!
- Minha querida, nós já passamos cinco dias juntos. Está claro que estamos bem entrosados.
- “Generalização apressada” – ela disse.
- Oh, desculpe!
- Generalização apressada – repetiu ela. – como você pode dizer que estamos bem entrosados baseado em apenas cinco encontros?
- Minha querida – falou Pedro, acariciando-lhe as mãos. – cinco encontros são suficientes. Afinal de contas, você não precisa comer todo o bolo para saber se ele é bom.
- “Falsa analogia” – disparou ela. – Não sou bolo, sou uma moça.
Aí, Pedro resolveu mudar de tática.
- Vera, eu te amo. Você é o mundo para mim. Por favor, meu amor, diga que vai me namorar firme. Porque, do contrário, minha vida não terá sentido. Eu definharei. Vou me recusar a comer.
- “Por misericórdia” – ela acusou.
- Bem, Vera – disse Pedro, forçando um sorriso –, você aprendeu mesmo os sofismas.
- É, aprendi.
- E quem os ensinou?
- Você.
- Está certo. Então, você me deve alguma coisa, não deve? Se eu não a procurasse, você nunca teria aprendido nada sobre sofismas.
- “Hipótese contraria ao fato”.
- Vera, você não deve tomar tudo ao pé da letra! Sabe que as coisas que aprendeu na escola não têm nada a ver com a vida.
- “Generalização não-qualificada”.
- Pedro perdeu a paciência.
- Escute, você vai ou não vai ser minha namorada?
- Não vou.
- Por que não?
- Porque esta manhã prometi a João que seria a namorada dele.
- Aquele rato – gritou Pedro, chutando as flores do jardim. – Você não pode namorar esse cara, Vera. É um mentiroso. Um chato. Um rato!
- “Envenenando o poço” – disse Vera. – e pare de gritar. Acho que gritar também é um sofisma.
- Com um tremendo esforço, Pedro baixou a voz, controlou-se e disse:
- Está bem. Vamos analisar esse caso logicamente. Como você poderia escolher o João? Olhe pra mim: um aluno brilhante, um tremendo intelectual, bonito, um cara com o futuro garantido. Olhe para o João: um cara-de-pau, vazio, um vagabundo. Pode me dar uma razão lógica para ficar com ele’
- Claro que posso. Ele tem uma moto – respondeu Vera, correndo para montar na garupa da motocicleta de João.
Pedro, com profunda tristeza, gritou com raiva para que Vera pudesse ouvir:
- O amor é um sofisma porque amar é sofismar!
- “Petição de principio” – berrou Vera, agarrada à cintura de João, na moto que arrancava velozmente.

Texto adaptado do original de Max Shulman. “O amor é uma falácia”, in As calcinhas cor de rosa do capitão e outros contos humorísticos, p. 62-90

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