sábado, 31 de outubro de 2009

A MULHER EM NOSSA SOCIEDADE - textos

Ninguém ousa namorar as deusas do sexo
Arnaldo Jabor O Globo em 21/09/99

A política está tão repulsiva que vou falar de sexo. Outro dia, a Adriane Galisteu deu uma entrevista dizendo que os homens não querem namorar as mulheres que são símbolos sexuais.
É isto mesmo. Quem ousa namorar a Feiticeira ou a Tiazinha?
As mulheres não são mais para amar; nem para comer. São para "ver". Que nos prometem elas, com suas formas perfeitas por anabolizantes e silicones? Prometem-nos um prazer impossível, um orgasmo metafísico, para o qual os homens não estão preparados... As mulheres dançam frenéticas na TV, com bundas cada vez mais malhadas, com seios imensos, girando em cima de garrafas, enquanto os pênis-pectadores se sentem apavorados e murchos diante de tanta gostosura.
Os machos estão com medo das "mulheres-liquidificador". Essas fêmeas pós-industriais foram fabricadas pelo desejo dos homens ou, melhor, pelo desejo que eles gostariam de ter ou, melhor ainda, pelo poder fálico que as mulheres pensam que os homens possuem.
O modelo da mulher de hoje, que nossas filhas almejam ser, é a prostituta transcendental, a mulher-robô, a "valentina", a "barbarela", a máquina-de-prazer sem alma, turbinas de amor com um hiper-atômico tesão. Antigamente, a prostituta era dócil e te servia. O homem pagava para ela "não" existir. Hoje, a cortesã moderna "existe" demais. Diante delas, todos se arriscam a brochar, apesar de desejá-las como nunca. A brochura que advém diante destas deusas não é por moral ou culpa; é por impossibilidade técnica. Quem se atreve a cair nas engrenagens destes "liquidificadores"? Que parceiros estão sendo criados para estas pós-mulheres?
Não os há. Os "malhados", os "turbinados" geralmente são bofes-gay, filhos do mesmo narcisismo de mercado que as criou. Ou, então, reprodutores como o Szafir, para o Robô-Xuxa. A atual "revolução da vulgaridade", regada a pagode, parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa.
A "libertação da mulher" numa sociedade escravista como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor e dinheiro. São escravas aparentemente alforriadas numa grande senzala sem grades. Mas, diante delas, o homem normal tem medo.
Elas são areia demais para qualquer caminhão. Por outro lado, o sistema que as criou enfraquece os homens que trabalham mais e ganham menos, têm medo de perder o emprego, vivem nervosos e fragilizados com seus pintinhos trêmulos, cadentes, a meia-bomba, ejaculando precocemente, puxando sacos, lambendo botas, engolindo sapos, sem o antigo charme jamesbondiano dos anos 60.
No sexo neoliberal, o homem brasileiro perdeu o machismo orgulhoso do tempo das mulheres-objeto artesanais. A mulher pós-industrial o assusta. Não há mais o grande "conquistador". Temos apenas alguns "fazendeiros de bundas" como o Huck, enquanto a maioria virou uma multidão de voyeurs, babando por deusas impossíveis.
Diz uma amiga: "Não tem mais homem na praça. Só tem casado, 'roubada' e veado".
O MESSIAS-VIAGRA Esta super-oferta de sexo rápido e maquinal está matando o mercado.A demanda diminui com o freguês inseguro, incapaz de consumir a mercadoria, ele se sentindo devorado pelo sanduíche que comprou. Vem aí uma recessão de corpos, com os preços caídos.
Ninguém confessa no Ocidente, mas os homens estão brochando em massa. Pesquisas nos EUA mostram que se transa cada vez menos no "turbo-capitalismo". Como amar entre celulares e Internets, com mulheres digitalizadas? Diante desta velocidade, o sexo se esvai. A verdadeira sensualidade é lenta. Precisa do sossego, da meia-luz, do abandono, do tempo vago. A volúpia precisa da calma. Daí, a chegada do "messias" dos paus: o Viagra.
Não é para velhinhos tristes. Mentira. O Viagra vem preencher o buraco que a globalização abriu, poluído por Aids e angústias de castração. Mais que um remédio, o Viagra está virando um amuleto; só de carregá-lo no bolso, o macho já se sente mais forte. O Viagra no Brasil virou o anabolizante dos pênis fracos, a contrapartida para as "mulheres-tchan". A rapaziada está tomando Viagra para festinhas de embalo, para ser uma superoctanagem, um carburador-extra dos homens tímidos, possibilitando trepadas robóticas, onde os corpos se entrechocam sem ninguém dentro. Ninguém está ali na cama, a não ser dois competidores aerodinâmicos, duas "coisas" sexuais. Só com ajuda de Ecstasy, Viagra, calmantes e coquetéis de chifre-de-rinoceronte é possível o encontro de corpos separados por "camisas-de-vênus", próteses e inibições.
Os casais, hoje, querem ser "coisas sexuais", eficientes, com uma liberdade física total que possa excluir um inconsciente cheio de problemas. Esta é a idéia: "Sou tão mais livre e feliz quanto mais usável!
Uso o meu corpo como se fosse uma prótese, um 'outro' que não sou eu, uma terceira-coisa na prateleira do supermercado". Nosso ideal é sermos desejados como um bom eletrodoméstico. Ninguém quer ser livre; queremos ser consumidos.Infelizmente, o mito da liberdade total mata o desejo. A fé na carne como "coisa" sem lei acaba em camas sem prazer. O mercado está banalizando a perversão, numa espécie de "fetichização" do fetiche. Me explico. O fetiche depende do segredo, do perigo, da escura experiência da transgressão à lei. Agora, o fetiche se "fetichizou" como mercadoria.
Assim como nos anos 60 tudo ganhava o emblema da "revolução", hoje tudo caminha para uma "naturalização" banal. Tudo pode; nada se consegue. O pecado faz muita falta. As hiper-gostosas não têm namorado. "Ô coitadas...”


Linguagem feminina: enigma a ser decifrado
Josenia Antunes Vieira

Criados diferentes, homens e mulheres desenvolvem uma espécie de dialeto próprio ao longo da vida. Em razão dessas diferenças, os choques em sua comunicação têm sido freqüentes. Ao falar, a mulher insinua; o homem fala diretamente.
Eles encaram a comunicação como um meio para chegar a um fim, que pode ser determinado com precisão, como a tomada de uma decisão, a obtenção de uma informação ou a resolução de um problema. Para elas, a linguagem é, sobretudo, um canal para criar laços afetivos.
Na maioria das vezes, as mulheres expressam seus sentimentos de forma indireta. O significado do que ela fala está nas entrelinhas, delineando veladamente o que pretende ou deseja que o outro faça. Quando diz “não”, quer dizer “sim” e vice-versa. Com isso, os homens vêem as mulheres como um enigma indecifrável.
Mas o universo da comunicação masculina também apresenta peculiaridades: usam comumente linguagem direta e interpretam as palavras literalmente. Para eles, a linguagem é, essencialmente, um instrumento de poder; usam-na para estabelecer domínio em determinado círculo social, garantindo, assim, a independência e a resolução de problemas.
Enquanto para eles o sentido é tomado ao pé da letra, a linguagem no universo feminino é um jogo de sedução. Ele não sabe jogar com essa linguagem. Se ela, ao passar por uma vitrine, diz: “Olha, que bolsa mais linda!”, espera, com esse simples comentário, que ele a presenteie com o objeto admirado.
As mulheres conseguem cuidar de mil coisas ao mesmo tempo e, enquanto os homens tendem a ver tudo em preto ou branco, as mulheres vêem as cores intermediárias. Elas percebem o cinza. São menos dogmáticas e mais conciliatórias. Os homens arriscam “tudo” ou “nada” com enorme facilidade; as mulheres procuram a opção mais segura.
Outra questão diferencial é a forma como cada um dos sexos encara um problema. Em uma briga de casal, homens discutem causa e efeito. Mulheres discutem sentimentos e emoções. E até na escrita está evidente a diferença entre os dois. Quando comparados os seus textos, elas preferem abordar sentimentos, enquanto eles tratam de coisas concretas.
Entretanto, as mudanças com relação ao lugar e ao papel das mulheres na sociedade minimizaram profundamente essas diferenças. À medida que o mundo se torna cada vez mais complexo, exigindo o processamento de centenas de variáveis ao mesmo tempo, o homem tenta decifrar as mensagens que estão ocultas no processo de comunicação, procurando compreender mais a mulher ao tornar-se companheiro de trabalho, colega de profissão ou amigo e confidente.
Por fim, as mulheres são hoje peça fundamental no mundo do trabalho e devem ser dignificadas. Mas é igualmente imprescindível enobrecer o papel do homem no mundo familiar e doméstico, que também é essencial nesses domínios.
Mulheres e homens mantiveram-se durante séculos tradicionalmente restritos a apenas um desses mundos. Mudar essas circunstâncias requer tempo, atenção especial aos grupos mais sensíveis e também uma nova postura social, mais aberta, mais equilibrada, em que tanto eles como elas se empenhem na busca do pleno entendimento.


Cyberperuas siliconadas

Na semana passada, eu tomava o baú de volta para casa quando espiei para a cadeira ao lado, onde uma mulher lia uma revista com a seguinte manchete: “Carla Perez estréia novo nariz”.
Houve um tempo em que se estreava um show, um filme, um livro, um disco ou uma peça de teatro. Mas, agora, em tempos de silicone, as Feiticeiras, Carlas Perez, Xuxas, Denielle Winnits e outras estreiam um nariz, um bunda, novas coxas ou novos seios. Muitas adolescentes estão entrando na onda. Segundo o colunista José Simão, da Folha de São Paulo, existem dondocas que realizaram tanta operação plástica que fazem xixi pelo sovaco.
A única diferença das cyborgs da ficção científica (seres dotados de inteligência e corpos perfeitos) com as cyberperuas siliconadas pós-modernas é que estas têm uma estampa perfeita, mas uma cabeça de Magda. Antes, a moda era a bunda; agora, são os seios. As musas da hora vêm equipadas com airbag. Claro que cada um tem o direito de fazer o que quiser do seu corpo. O que se discute são as conseqüências para a saúde e o efeito que esses modelos de beleza provocam na cabeça das pessoas. Do ponto de vista da saúde, em determinados casos, a aplicação de silicone pode provocar sintomas de rejeição do organismo: gripe, fadiga, mal-estar. Recentemente, a revista Capricho publicou reportagem sobre um modelo de 19 anos que foi parar no setor de emergência de um hospital apresentando infecção generalizada por rejeição à prótese. Ela sofreu nove cirurgias para reconstituir os seios. E, além da possibilidade de rejeição, o silicone dificulta o exame que detecta o câncer na mama.
Do ponto de vista estético, este modelo da perfeição é extremamente opressor; não é o modelo do prazer, do tesão, da afirmação. É um modelo de exclusão. Ele produz infelicidade, depreciação, frustração. Mas é claro que todo mundo pode ser feliz com a cara, os ossos, a raça, os seios e a bunda que Deus lhe deu. Com exceção de raros casos em que é necessária um intervenção corretiva, o problema da auto-estima não é de bisturi; é cultural. Vejam o que diz o Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros modernos: “A primeira vez que vi Tereza / Achei que ela tinha pernas estúpidas / Achei também que a cara parecia uma perna / Quando vi Tereza de novo / Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo / (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) / Da terceira vez não vi mais nada/ Os céus se misturaram com a terra / E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”. (Tereza, in Libertinagem).
E a nossa vida também não é assim? Só quem nega sua verdade se submete a reduzir a diferenças do corpo, da raça e do sangue a uma massa informe para ser cyberperua siliconada, moldada conforme o gosto do freguês. Não é a toa que Gilberto Gil canta a necessidade de se aperfeiçoar o imperfeito, desprezando a perfeição. Nós, os humanos, somos (antes de tudo) animais imperfeitos. Nada mais divino nos humanos do que assumir sua condição de mortais.

Severino Francisco – Jornalista. In, Radical nº 20- ano V- Julho/2004


Feromônios em transpiração masculina reduzem tensão em mulheres
da Folha Online

Pesquisadores da Universidade da Pensilvânia descobriram que o suor masculino pode influenciar o humor das mulheres: ele ajudaria a reduzir o estresse, induziria o relaxamento e afetaria o ciclo menstrual.
"Há muito tempo sabemos que os feromônios femininos podem afetar o ciclo menstrual de outras mulheres", disse George Preti, um dos autores da pesquisa. "Esses estudos são os primeiros a documentar efeitos dos feromônios masculinos em mulheres."
Os pesquisadores coletaram amostras das axilas de homens, as quais foram mescladas e aplicadas abaixo do nariz de 18 mulheres, entre 25 e 45 anos de idade. Elas não sabiam o origem do teste_ acreditavam que se tratava se uma análise de álcool, perfume ou cera para pisos.
Após seis horas, as mulheres descreveram uma redução na tensão, enquanto análises de sangue demonstraram aumento no nível de um hormônio que normalmente surge antes da ovulação.
Segundo o co-autor Charles Wysocki, a pesquisa pode indicar uma "comunicação química" entre os sexos. "Em um ambiente mais sensual, a exposição a estes odores pode facilitar o surgimento de temperamento sexual ou sentimentos", afirmou.
Os pesquisadores acreditam que o estudo pode levar a novas terapias de fertilidade e tratamentos para tensão pré-menstrual, caso o agente ativo da transpiração masculina for isolado. "Se determinarmos como os feromônios influenciam o humor e a resposta endocrínica, podemos fabricar moléculas que manipulem os efeitos observados", disse Wysocki.
Com agências internacionais


Império da Bunda

As bundas estão no ar. Estamos vivendo em pleno império da bunda. As bundas abundam em todos os espaços. Houve um tempo em que a bunda era uma parte do corpo humano. Mas hoje a bunda se tornou uma pessoa, com carteira de identidade, CPF, conta bancária e tudo. Antigamente, no tempo das fábulas, os animais falavam. Entretanto, hoje são as bundas que falam, apresentam programas de televisão, viram atrizes de novelas, compõem letras de música, se transformam em babás eletrônicas. Inventaram até um gênero musical, a Axé Music, para servir de trilha sonora para a bunda.
Nada contra uma bela bunda. Uma bela bunda é uma invenção divina. O arquiteto Oscar Niemayer buscou inspiração para a leveza de sua arquitetura nas curvas barrocas da mulher brasileira. Na elegância, na delicadeza e graça da Bossa Nova sempre se insinuam os encantos de uma musa morena: “Olha que coisa mais linda/ mais cheia de graça/ é ela menina que vem e que passa/ no doce balanço, caminho do mar...” E Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro, também esculpiu um pequeno monumento, em forma de palavras, para exaltar a beleza da bunda feminina: “ A bunda, que engraçada? Está sempre sorrindo, nunca é trágica. (...) Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz/ na carícia de ser e balançar./ Esferas harmoniosas sobre o caos.”
Como se vê, a bunda pertence a uma linhagem muito nobre na cultura brasileira. Ela inspirou nossos melhores artistas. Mas não é possível dizer o mesmo sobre a cultura de bunda vigente no país. Ela não se contenta mais em ser motivo de inspiração e passou a roubar a cena. Hoje a bunda ocupa o papel principal, grava discos, manda repetir o refrão da música, comanda as massas, pensa.
É aí que mora o perigo. A encrenca começa quando as bundas abrem a boca e se metem a falar. Uma das musas da cultura de bunda afirmou que escola se escreve com “i”. E ao receber o telefonema de um telespectador de Santa Catarina, ela exultou: “Ah, que bom, mais um gaúcho!” A bunda cantada por Drummond era uma bunda lírica. A das cyber-musas é apenas uma bunda que se vende, enlatada na prateleira televisiva, com seu erotismo calculado pelo departamento de marketing. Não inspira nada a não ser relações onanistas.
O problema de uma cultura de bunda é que ela cria também toda uma geração de cabeça de bunda. Uma bunda não pode substituir a cabeça na função de pensar. A escritora americana Gertrude Stein escreveu um célebre verso para desmistificar a imagem da rosa, usada abusivamente pelos poetas românticos: “One rose is one rose is one rose is one rose... ( Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa). Nós poderíamos parafrasear Gertrude Stein e dizer sobre a nova onda que assalta a telinha “Uma bunda é uma bunda é uma bunda é uma bunda...”

Severino Francisco – Jornalista In, Radcal nº 18


A bunda que engraçada
Carlos Drumond de Andrade

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
rebunda.


A cerveja e o assassinato do feminino
Berenice Bento

Há muitas formas de se assassinar uma mulher: revólveres, facas, espancamentos, cárcere privado, torturas contínuas. Mesmo com um ativismo feminista que tem pautado a violência contra as mulheres como> uma das piores mazelas nacionais, a estrutura hierarquizada das relações
entre os gêneros resiste, revelando-nos que há múltiplas fontes que alimentam o ódio ao feminino.
Como não ficar estarrecida com a reiterada violência contra as mulheres nos comerciais de cerveja? Com raras exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja gelada e o homem ávido de sede. As campanhas são direcionadas para o homem, aquele que pode omprar.
Alguns exemplos: uma mulher faz uma pequena dissertação sobre a cerveja para uma audiência masculina, incrédula de sua inteligência. Logo o mal-entendido se desfaz: claro, uma mulher não poderia saber tantas coisas se tivesse como mentor um homem; a mulher é engarrafada,
transformada em cerveja; um mestre obsceno infantiliza e comete assédio moral contra uma discípula; ela é a BOA. Quem? O quê? A mulher ou a cerveja?
Todos os comerciais são de cervejas diferentes e estão sendo exibidas simultaneamente. Nesses comerciais não há metáforas. A mulher não é 'como se fosse a cerveja': é a cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão
dispensável que pode, inclusive, ser substituída por uma boneca sirigaita de plástico, para o júbilo de jovens rapazes que estão ansiosos pela aventura do verão.
Se já criminalizamos alguns discursos porque são violentos, não é possível continuarmos passivamente consumindo discursos misóginos a cada dia, como se o mundo da televisão não estivesse ligado ao mundo real, como se as violências ali transmitidas tivessem fim no click do controle remoto.
Embora a matéria-prima para elaboração desses comerciais esteja nas próprias relações sociais, nas performances ali apresentadas há uma potencialização da violência. Não há uma disjunção radical entre violência simbólica e física. Há processos de retroalimentação.
A força da lei já determinou que os insultos racistas conferem ao emissor a qualidade de racista. Também caminhamos para a criminalização da homofobia em suas múltiplas manifestações, inclusive dos insultos.
Por que, então, devemos continuar repetidas vezes ao longo do dia a escutar 'piadas' misóginas, alimentando a crença na superioridade masculina sem uma punição aos agressores? Sabemos da força da palavra para produzir o que nomeia, sabemos que uma piada homofóbica, racista, está amarrada a um conjunto de permissões sociais e culturais que autoriza o piadista a transformar o outro em motivo de seu riso. Agora, é incalculável o estrago que imagens
reiteradas de mulheres quase desnudas, que não falam uma frase inteligente, que estão ali para servir a sede masculina, invisibilizadas em duas tragadas, provocam na luta pelo fim da violência contra as
mulheres.
Da mesma forma que o 'piadista' racista e/ou homofóbico acha que tudo não passa de 'brincadeira', o marqueteiro misógino supõe que sua 'obra-prima' apenas retrata uma verdade aceita por todos, inclusive por mulheres: elas existem para servir aos homens. E como é uma verdade
aceita por todos, por que não brincar com ela? Ou seja, nessa lógica, ele não estaria fazendo nada mais do que reafirmar algo posto. Será? Não é possível que defendam aquela sucessão de imagens violentas como 'brincadeiras'. Essa ingenuidade não cabe a alguém que sabe a força da imagem para criar desejos.
O que pensam os formuladores dos comerciais? Que tipo de mulheres habita seus imaginários? Por que há essa obsessão pelos corpos femininos? Será que eles ainda pensam que as mulheres não consomem cerveja?
Não se trata de negar a mulher-consumível, coisificada, pela mulher consumidora, mas de apontar os limites de uma estrutura de comercial que peca inclusive em termos mercadológicos. Tal qual o assassino que matou sua esposa acreditando que suamasculinidade está ligada necessariamente à subordinação feminina, a cada gole de mulher, o homem sente-se, como em um ritual, mais homem.
Conforme ele a engole, ela desaparece de cena para surgir a imagem de um homem satisfeito, feliz; afinal, matou sua sede. É um massacre simbólico ao feminino. É uma violência que alimenta e se alimenta da violência presente no cotidiano contra as mulheres.

BERENICE BENTO é doutora em sociologia, pesquisadora associada do Departamento de Sociologia da UnB e autora do livro 'A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual'."


Oprimidas pelo ideal de beleza
Carla Rodrigues

Os modelos de beleza estão desempenhando, nesse momento, um papel impositivo, e estabelecem um ideal de feminilidade fora do qual a existência é impossível. É desse tema que trata o trabalho “De menina a mulher, impasses da feminilidade na cultura contemporânea”, da psicanalista Silvia Alexim Nunes. Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/Uerj, Silvia traz para o papel a experiência de uma paciente adolescente, Clara, que tem como objetivo se tornar uma mulher de sucesso. Sua principal condição para que se sinta feliz é tornar esquelético o seu corpo roliço.
O corpo aparece, para Clara, como obstáculo para que ela se considere bem-sucedida, ou seja, bonita, rica e desejável. Clara supõe, destaca Silvia, que “sucesso é felicidade e, mais ainda, que ambos dependem, principalmente para as mulheres, da beleza e do cultivo do corpo”. A preocupação com o corpo feminino não é, lembra a psicanalista, novidade. Quando, no final do século 19, as histéricas lotaram o consultório de Freud e o levaram a diagnosticar os sintomas do efeito da repressão da sociedade contra a mulher, estavam se rebelando contra as regras em vigor desde o século 17.
Até então, as mulheres viviam oprimidas pelo que a medicina considerava as "características naturais" das mulheres, como a fragilidade, a timidez, a doçura, a sedução e a afetividade. Das histéricas até aqui, o que as mulheres conquistaram foi, além de voz, a possibilidade de construir modelos de feminilidade que melhor lhes conviesse. A imposição que já se deu a partir da ciência se reapresenta, agora, através da estética, que tem desempenhado o mesmo papel impositivo.
Silicone, cirurgias estéticas, horas por semana dedicadas a exercícios e academias de ginástica, dietas constantes, tudo isso tomou o lugar da antiga concepção de que o corpo feminino é imperfeito e de que a feminilidade é símbolo da fragilidade humana. Quanto mais as mulheres experimentam seus corpos como inadequados, mais se sentem fracassadas, impotentes, descontentes com a sua condição de mulher. O controle sobre os corpos femininos, que Silvia identifica hoje na estética, está presente desde a constituição do modelo burguês que inaugurou a modernidade, e que fez das mulheres peças fundamentais para a reprodução de uma população saudável. Mãe e mulher, aqui, se confundem, em nome de um padrão de saúde e higiene.
Neste aspecto, Silvia chama atenção para a quantidade de recursos que a medicina tem criado para sumir com os ciclos menstruais, que ela interpreta como forma de apagar as marcas da feminilidade. Quando a ciência ainda não sabia explicar o que significava o sangue da menstruação, considerava que aquele momento significava um estado de impureza da mulher. Depois, a medicina do século 19 passou a considerar os ciclos menstruais como momentos em que as mulheres ficariam mais suscetíveis emocionalmente, identificando o sangramento como sinal de fragilidade do corpo da mulher. Agora, Silvia alerta, o ideal da mulher liberada é atravessar o mês inteiro sem sinal perceptível de menstruação.
Silvia localiza o problema na puberdade, que é quando a ditadura da estética começa a se impor, mas lembra que esse conflito pode aparecer em outros momentos da vida da mulher – ou até mesmo se perpetuar. Na outra ponta, o envelhecimento também oferece o mesmo risco de a mulher experimentar seu corpo como “inadequado, insuficiente, imperfeito, instalando, assim, um conflito com sua feminilidade.” A forma de escapar da opressão pela beleza é, segundo ela, estabelecer uma relação positiva com o corpo, vivendo a feminilidade como forma de prazer, e não de sofrimento. Para isso, a psicanálise, defende Silvia, tem muito a contribuir.
A escapatória estaria em fugir da massificação e apostar na singularidade. Não chega a ser contraditório que o mesmo tempo em que é dada à mulher a liberdade de ser como bem entender seja também o momento em que novos rigores se impõem, acirrando o conflito entre seguir as regras externas ou apostar nas marcas individuais. Se o tão criticado individualismo serve para alguma coisa, é para colocar essa possibilidade – a de que cada sujeito seja absolutamente único na multidão.
Ou, como disse o filósofo italiano Antonio Negri, “o pós-moderno insere a diferença como recusa ao sistema compactado do capital”. Autora de “O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha - Um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade”, Silvia apresentou seu trabalho sobre os efeitos perversos da estética numa mesa de debates realizada no evento Estados Gerais da Psicanálise, ocorrido no Rio no final de outubro, durante o qual Negri fez sua conferência.


ÍNDIA
O país em que meninas não são bem-vindas

O cartaz pintado a mão fica em frente a um consultório médico num bairro arborizado de Nova Délhi, capital da Índia: é uma advertência de que este bairro de casas muradas, carros importados e clubes privativos respeita a lei. ‘‘Aqui não se faz exame pré-natal para determinar o sexo’’, indica o cartaz. ‘‘Esses exames são um delito.’’
Mas é evidente que a lei tem exceções. ‘‘A mentalidade da Índia é que é preciso ter um filho homem, diz uma jovem de Nova Délhi, pertencente a uma família rica. Depois de dar à luz uma filha, a família do seu marido exigiu que a jovem se submetesse no futuro a exames de determinação pré-natal do sexo. Quando suas três gestações seguintes revelaram que eram meninas, a obrigaram a abortar. Neste país, a família do marido é quem manda.
Em quase toda a Índia dá-se preferência a filhos homens, que não requerem dotes para se casar e podem acender as piras fúnebres de seus pais. A mulher casada vai morar com a família do marido. ‘‘Criar uma filha’’, diz um velho ditado hindu, ‘‘é como regar um jardim árido’’.
Esta preferência conduz a práticas como o assassinato de meninas ao nascere, ilegal desde mais de um século, mas muito comum nesta nação de 1.050 milhões de habitantes. E os testes pré-natais trouxeram com eles o aborto dos fetos de sexo feminino.
Os ativistas e as autoridades sustentavam que este era um problema dos setores pobres e incultos, que se remediaria gradualmente mediante a educação, a lei e o crescimento da classe média. Mas à medida que a classe média florescia nas últimas décadas e se fortaleciam as leis de proteção às meninas, a situação só foi piorando. E as piores zonas são os bairros onde vivem os ricos.
Há seis anos, frente à difusão da tecnologia de ultra-som barata e um desequilíbrio na proporção entre meninas e meninos, a Índia proibiu os testes de determinação de sexo. Os resultados são apenas perceptíveis. Segundo o censo de 2001, entre as crianças menores de 6 anos, há 927 meninas para cada 1 mil meninos, comparando com 945 em 1991 e 962 em 1981. As estatísticas significam que ‘‘faltam’’ entre 20 e 40 milhões de mulheres na Índia como resultado de abortos ou infanticídios, segundo as autoridades do censo e os ativistas.
‘‘Acreditava-se que a urbanização e a prosperidade teriam um efeito modernizador’’, diz Satish Agnihotri, estudioso do que os ativistas chamam de ‘‘feticídio’’. A realidade, diz, é que ‘‘ao aumentar a prosperidade, baixa-se a proporção entre os sexos’’.
É outro exemplo da dicotomia própria da Índia moderna. Cinquenta e cinco anos depois de se tornar independente da Grã-Bretanha, a Índia tem a maior classe média do mundo — calculada em 300 milhões de pessoas —, mas também tem quase 250 milhões de desnutridos. Conta com um dos centros mundiais de desenvolvimento de informática, na cidade de Bangalore, mas 110 milhões de locais ainda carecem de banheiros. É a nação que há décadas elegeu uma primeira ministra, Indira Gandhi, e onde algumas mulheres exercem altas funções acadêmicas, empresárias e do governo, mas a maioria vive reclusa em suas casas, desesperadas pela falta de direitos.
As razões dessas estatísticas de disparidade entre os sexos vão da economia à cultura: as pressões para ter famílias pequenas, os dotes que chegam a milhares de dólares e, o mais importante, o baixo preço dos testes pré-natais para determinar o sexo do feto, que custam menos de dez dólares, e do aborto, feito por 18 dólares. É muito dinheiro para os pobres, ainda que não seja inacessível. Para os ricos, é menos do que custa um jantar num bom restaurante.

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