sábado, 14 de novembro de 2009

Desterrado - Frei Beto

No oitavo andar, mesmo descalço, estou distante da superfície. Há uma montanha de cimento e ferro entre meu corpo e a terra que produz alimentos e flores, abre-se em rios e mares, acolhe pedras e absorve chuvas.
Desço e, a caminho do trabalho, sou transportado por um veículo que me mantém a certa distância do dorso do Planeta. Trafego por avenidas que já forma rios e ruas que vedam as costas de nossa morada cósmica com uma densa camada de asfalto.
Subo no elevador, essa caixa metálica que nos distribui por salas e escritórios, marionetes agitadas de um gigante invisível que ri de nossa sofreguidão. À hora do almoço, piso calçadas espessas com meus pés cobertos por grossas solas de material sintético.
Nunca deixo meu corpo em contanto direto com a mãe Gaia. Meu computador tem um fio-terra, mas eu não. Guardo em mim toda energia acumulada, excessiva, que dilata gorduras que entopem artérias, faz desabrochar úlceras, prepara o coração para o infarto e aquece a tensão quem me torna irritadiço e estressado.
Não tenho nenhum canal aberto por onde a energia acumulada possa fluir e descarregar. Não piso a relva para não sujar os pés; temo me arranhar na aridez das pedras; e quase nunca mergulho no mar, cuja salinidade opera o descarrego do corpo.
Ser aéreo, trafego sem contato direto com o Planeta que é minha terra mátria. Dele sugo a vida e minha própria história biológica e psíquica. Nosso percurso rumo à vida teve início, juntos, há 3,5 bilhões de anos, quando começou a resfriar o calor que revestia este fragmento de Sol.
Carregado pela fita isolante que me envolve, não piso na Terra e, por isso, piso em meus semelhantes. Impaciente, reajo bravo a todo contratempo e trago a intolerância como escudo. Sou um filho de Gaia que cortou o cordão umbilical, como se eu pudesse dispensar o leite materno.
Já não intercambiamos energias. Meus pés, guarnecidos por meias e sapatos, servem apenas para movimentar as pernas. Assim, isolo meu corpo e isolo o corpo do Planeta, escondendo-o sob pedras, areia, asfalto e prédios.
Enterro a Terra. Sem me dar conta de que, de fato, construo minha própria tumba, tão lacrada quanto a dos faraós. A diferença é que eles as ocuparam quando mortos. Eu ocupo um espaço muito mais amplo do que as pirâmides. Vivo no imenso sarcófago da megalópole, cujos shopping-centers são pirâmides estilizadas. Ouço cada vez mais o sussuro dos mortos, e menos o hálito saudável de Gaia.
Sou um desterrado. E ainda insistem em me convencer de que isso é progresso.

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